Um halo, um elo, um desenlace

Nesta exposição, elementos animais, vegetais e minerais interagem na conformação de unidades e estruturas que carregam um rumor de vida latente. Os organismos de fato estão mortos – os pássaros, os peixes, os insetos, as plantas, ramos, frutos, sementes. E estão todos presentes, sob capas metálicas, empalhados, mas mortos. Já as coisas em que se converteram e as situações que passaram a integrar são vívidas e concentram uma espécie de estase energética: como se uma alta carga de energia se acumulasse, sem vazão e em estado de potência, nesses corpos e materiais folheados de cobre, fundidos em alumínio e latão, cobertos total ou parcialmente por chumbo.

Tal saturação de energia é notável, por exemplo, na agitação virtual das piranhas de metal sobre o solo, maciças, pesadas e reunidas em grupos, em atrito umas com as outras, aparentemente em contorções, entre um mergulho virtual de parte de seus corpos no chão e o esboço de um salto para além dessa superfície. A mesma intensidade está no corpo de borboletas, cigarras, abelhas e libélulas que emanam força e um brilho uniforme, a partir da fragilidade de suas estruturas físicas. Até na morosidade com que o chumbo escorre e se deposita sobre os dormentes de madeira, essa vitalidade se insinua, ao evocar fios e possas d’água, em uma corrente que se arrasta estreita, quase como um córrego, meio corre-e-para, vai-não-vai. Diante dessas coisas, é de se interrogar: o que aqui tem vida e o que não tem, o que é vivo e o que é morto?

Mas perguntar-se sobre isso não é o mesmo que dizer que tais elementos teriam adquirido “outra vida”, ou uma “vida nova”. Muito pelo contrário. A produção recente de Ana Paula Oliveira parece colocar esses seres (que recolheu mortos dentro e nos arredores de seu ateliê) em uma existência sem evolução, sem desenvolvimento, fora de um ciclo vital de crescimento e decadência. Uma existência, talvez, próxima à de objetos – afinal, alguns se encontram disponíveis para uso, como adornos. Não é então por acaso que esses insetos se parecem tanto com joias, broches e pingentes, ou com itens extraordinários de um museu de história natural. De qualquer modo, trata-se, mesmo, de uma existência refreada, que, no entanto, é capaz de relacionar e estabelecer força de tração entre esses organismos sem vida e matérias condutoras de eletricidade e calor; entre estruturas que são inanimadas, as condições variáveis de suas superfícies tornadas reflexivas e luminescentes (conforme a iluminação do ambiente onde se encontram, da presença ou não de alguém diante delas etc.) e o dinamismo que a configuração espacial da exposição confere a cada uma de suas partes.

A natureza que se assoma nesses trabalhos surge, assim, corrompida, torta e desfigurada; distante das idealizações de essência e pureza que se projetam como ideia, ou como mito, sobre o universo físico. Em um plano mais geral, Ana Paula Oliveira nem parece fazer a distinção entre natureza e cultura. O que a artista manifesta agora –

e mais uma vez, como já o fizera em obras anteriores – é uma curiosidade biológica e estética por processos transicionais da forma; a partir de um espectro amplo de possibilidades, mas que vai direto, sem desvio, da materialidade do mundo natural ao informe; que vai do mundo das coisas, das aparências da vida prática (a montagem dos trabalhos conta apenas com peças de casa de ferragem, por exemplo, não há itens construídos especialmente para a apresentação das obras), direto para uma monstruosidade sem classificações.

Por isso os trabalhos tendem a gerar atração e repulsa, em simultâneo. Os principais procedimentos da artista nesta mostra são os de revestir e, com isso, apagar parte das características físicas dos animais, com metal, matéria muito mais pesada que os corpos que encobre. O processo que prepara esses bichos para conservação e exibição, que os recobre com uma cintilação regular e completa, desaparece, também, com suas cores e detalhes de sua anatomia. As operações, aliás, reforçam isso mesmo: um desaparecimento. E o resultado é uma natureza bizarra, fora de sua ordem, transtornada. A tal ponto que talvez nem seja exagero dizer que a arte aqui, quando se realiza, é já um acontecimento póstumo.

Desde o início de sua trajetória como artista, no final da década de 1990, Ana Paula Oliveira produz situações-limite. Uma das características marcantes de sua produção envolve a reunião de matérias várias (vidro, borracha, metal, madeira, plástico, graxa, animais vivos) para a construção de estruturas que, de cara, são postas no extremo de suas possibilidades de existir. Ora é a própria construção que corre o risco de desabar, ora é a graxa que dá pinta de que vai escapar e arruinar tudo, ora é o saco com peixes ornamentais prestes a estourar… Aparentemente, tudo costuma estar sob o risco de ir para o buraco.

E a despeito dos materiais, das dimensões que alcançam, monumentais ou minúsculas, a despeito das soluções de montagem que mobilizam, os trabalhos da artista inspiram instabilidade. É comum que tenham o aspecto de uma articulação provisória. Principalmente em peças anteriores, é notável, ainda, o esforço que determinados elementos exercem e a energia que dispendem para sustentar a estrutura de que são constitutivas. Não raro, há drama nesses arranjos. Vez ou outra, há também algo cenográfico ou teatral.

Em comparação, então, com trabalhos anteriores, as obras componentes de Um halo, um elo, saudade de pedra são desimpedidas. Estiram-se, como as anteriores, porém com um desembaraço, ou uma agilidade, infrequente na produção. De cara, por exemplo, não dependem de amarrações que insinuam estar por um triz de se desfazer. As peças de Ana Paula Oliveira que ocupam agora a Galeria Marcelo Guarnieri se dispõem soltas no espaço, apoiadas sobre o chão, sobre macacos hidráulicos, ou simplesmente penduradas na parede. Algumas são fisicamente delicadas, mas são todas também fisicamente desprendidas. Na maioria, não há nada que enganche ou mantenha suas partes atadas. E talvez desse modo os trabalhos apontem para um desenlace na obra – não como solução ou como desfecho de alguma coisa, mas como desdobramento de suas próprias singularidades. Em direção, tudo indica, de uma linguagem sem amarras normativas, livre de prescrições. À solta.

José Augusto Ribeiro